A escravidão que sustenta as casas abandonadas

A escravidão que sustenta as casas abandonadas

Um podcast trouxe de volta ao centro das discussões um tema que assombra o Brasil por séculos, a escravidão. “A Mulher da Casa Abandonada” é um conteúdo da Folha de S.Paulo, apresentado pelo jornalista Chico Felitti e narra a história de Margarida Bonetti, mulher que mora em uma casa abandonada, depois de ter mantido uma trabalhadora brasileira em trabalho escravo por 20 anos nos EUA.

A história contada parece absurda, ainda mais se pensarmos que ela aconteceu há pouco mais de duas décadas e envolve pessoas com instrução e da chamada “alta sociedade brasileira”. Porém, apesar de real, o acontecimento expõe muito sobre as relações de trabalho aqui no Brasil.  

Casos como esse foram relevantes para a ONU colocar na lista de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, um ponto exclusivo para as relações de trabalho, o ODS 8 – Trabalho decente e crescimento econômico. Entre as metas desse objetivo tem uma específica para combater o trabalho escravo e análogo a escravidão:

Meta 8.7 – Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas.

Ouça o episódio do Planeta CIVI-CO sobre ODS 8 

Segundo dados do Ministério do Trabalho, nosso país registra o maior número de casos de trabalho análogo à escravidão desde 2013. A fiscalização do trabalho resgatou 1.726 pessoas em 169 casos de trabalho análogo à escravidão em 2021, o maior já registrado desde 2013, quando se contabilizou 170 casos. Só em 2022, mais de 500 pessoas já foram resgatadas no Brasil. 

Mas por que casos como esses, mesmo sendo amplamente divulgados pela mídia e com repercussão internacional, caem no esquecimento popular e precisam ser constantemente revisitados?   

“Ela era da família”

A resposta é simples, porque nossa sociedade vem tratando essa relações trabalhistas de forma banal. Histórias como essa da Margarida Bonetti se multiplicam no nosso país e não são exclusivas das famílias de alto poder aquisitivo. 

Dentro de muitos lares brasileiros, inclusive os de classe média, esse cenário se reproduz. Mesmo longe das agressões e atrocidades, nessas relações trabalhistas são oferecidas condições mínimas para a dignidade humana, como alimentação e moradia precários, em troca de trabalho doméstico. 

Esse recorte de gênero, raça e economia traça um perfil das pessoas que são vítimas nesses casos, em sua maioria mulheres negras e em situação de vulnerabilidade econômica e social. 

A mesma parcela específica da população brasileira que vem sendo prejudicada desde os primórdios da escravização e que sustenta o sistema econômico por alguns séculos. 

Novas embalagens 

Tudo isso parece longe da nossa realidade. Uma sociedade que almeja alcançar modelos sustentáveis e instalar um novo capitalismo, mais justo e equilibrado, precisa discutir e reavaliar as relações trabalhistas onde a satisfação, qualidade de vida, distribuição de renda e produção possam andar lado a lado. 

Porém, mesmo com a adoção de métricas, como o ESG, esse modelo ainda desliza em velhas práticas que beiram a exploração e a desvalorização do trabalhador. Um exemplo disso é a relação injusta que os aplicativos de entrega e de transporte tem com os seus colaboradores. A chamada “uberização” dos cargos é um novo modelo de relações injustas e que só aumentam a desigualdade. 

Loft, Quinto Andar, Kavak, Vtex, Mercado Bitcoin… Além dos valores expressivos que essas empresas movimentam, elas têm outro fator em comum: em um curto espaço de tempo, todas anunciaram demissões em massa. Somente a Loft cortou 364 pessoas no início de julho. Outras 159 já haviam sido demitidas em abril. Somando os dois grupos, mais de 500 pessoas foram desligadas nos últimos quatro meses.

Segundo levantamento do Layoffs Brasil, mais de 2 mil profissionais que trabalhavam em startups perderam seus empregos neste ano.

Por trás dos números secos da estatística, surge o pouco cuidado das empresas com a responsabilidade social e governança dos negócios, dois pilares cruciais de avaliação de risco de negócio nas boas práticas ESG e que vão ao encontro com outra meta do ODS 8: 

Meta 8.8 – Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários.

Quebrando correntes 

O caso de exploração envolvendo Margarida Bonetti pode ser chocante, mas está longe de ser o único. ALERTA SPOILER: a equipe do podcast “A Mulher da Casa Abandonada” encerra a temporada expondo histórias similares que aconteceram no passado recente em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na cidade de Santos (SP). 

É preciso repensar as relações trabalhistas, seja através do fortalecimento do sistema judiciário trabalhista, da cobrança por meio de métricas ESG ou até mesmo com ações concretas como o AppJusto, que se propõe a fazer uma melhor distribuição com entregadores. 

Promover urgentemente a criação de um modelo livre das explorações, sobretudo para a população que há anos sustenta a base do nosso sistema econômico e vem sofrendo com as mazelas desse modelo defasado.