Um Brasil de lutas e esperanças

Um Brasil de lutas e esperanças

Por Amanda Vargas*

Representação indígena no poder político. Este é o espaço que Sonia Guajajara e Célia Xakriabá irão reforçar no Congresso Nacional brasileiro. Estas duas mulheres indígenas foram eleitas Deputadas Federais nas eleições políticas que aconteceram em 2 de outubro.

Perante a possibilidade da reeleição de Jair Bolsonaro, ambas apelam a uma força tarefa para sensibilizar os brasileiros sobre o futuro fascista que se prevê. Para as duas líderes indígenas, a eleição do candidato Lula no segundo turno é a esperança de que a democracia seja mantida, e que as questões ambientais e dos povos indígenas sejam honradas.

Leia abaixo a entrevista com as duas deputadas eleitas:

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Foto: Leonard Okpor

Sonia Guajajara é originária da Araribóia, Terra Indígena no Maranhão. No entanto, ela se candidatou a Deputada Federal pelo estado de São Paulo por sua enorme responsabilidade na preservação dos biomas brasileiros, especialmente da Amazônia, devido ao seu poder econômico.

A sua candidatura foi estrategicamente alinhada com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, que viu nela a oportunidade de ter uma representante dos povos nativos num lugar de destaque na política nacional. Esta é a primeira vez que São Paulo elegeu uma mulher indígena, e Sonia sabe da responsabilidade que tem nas suas mãos.

Como se sente agora que foi eleita Deputada Federal?

Estou extremamente feliz e orgulhosa por ver que São Paulo respondeu ao apelo por aldear a política. Os meus eleitores elegeram-me para honrar a missão de trazer ao Congresso a força e a ancestralidade dos povos indígenas. Farei com que todos os votos tenham valido a pena, e não pouparei esforços para garantir a demarcação das terras indígenas, a proteção da Mata Atlântica, da Amazônia e de todos os biomas brasileiros, defendendo a agroecologia para combater a fome e garantir alimentos sem veneno no prato de cada brasileiro. Finalmente, sinto-me muito feliz e orgulhosa por saber que hoje faço parte do grupo de mulheres que ocupam um lugar no Congresso Nacional lutando pela mãe de todas as lutas: a luta pela Mãe Terra!

A minha candidatura teve sempre o objetivo de cumprir este papel que a história nos atribuiu – o de não realizar um projeto pessoal, mas sim trabalhar como um agente histórico empenhado num projeto coletivo. Faz parte dele aumentar o número de representantes indígenas no Congresso Nacional. E nosso objetivo é trazer nossas vozes, reivindicações e contribuições para a construção de um futuro mais democrático, plural e verdadeiramente comprometido com as necessidades reais do povo brasileiro.

Por que a representatividade política dos povos indígenas é mais relevante do que nunca?

Respeito os diferentes modos de vida, mas compreendo que o modelo econômico atual, feito por não indígenas, é completamente predatório. Por isso é importante respeitar os direitos indígenas, que são intrinsecamente ligados ao meio-ambiente. Só assim podemos garantir o futuro, porque os povos nativos são 5% da população que cuidam de 80% dos biomas do planeta. Estes são dados da ONU, subestimados mesmo por especialistas. Temos uma emergência climática! Trata-se de lutarmos hoje, de nos envolvermos hoje, porque a representação indígena nos partidos políticos é necessária para termos uma voz na mesa de decisão.

Quais projetos de regenerabilidade ambiental você pretende aprovar no Congresso?

Temos muitas ideias, mas primeiro precisamos enfrentar o Congresso Nacional, que é altamente conservador e desenvolvimentista. Sabemos que a grande maioria dos senadores e deputados eleitos continuarão a aprovar a legalização da destruição através do acesso e exploração dos territórios indígenas. O que é necessário agora não são ideias, mas sim a articulação contrária a esta postura. É fortemente necessária a criação de um espaço que promova uma nova consciência política e ambiental – seja no Congresso, seja na sociedade.

O resultado das eleições nos mostra que a sociedade brasileira ainda não está preparada para essa mudança, que é também necessária fora do Parlamento. Percebo a necessidade de que a sociedade se torne mais consciente e mais responsável pela vida e pelo futuro. Estamos apenas plantando uma semente, e não adianta sonhar que vamos mudar esta situação a curto prazo. Estamos plantando uma semente, para que no futuro possamos colher uma nova consciência humana sobre o que é realmente urgente e destrutivo para o planeta e para os seres humanos. Nós, povos indígenas, fomos eleitos para enfrentar e contrapor o atual Congresso, que é completamente retrógrado, e precisamos do apoio da sociedade brasileira.

Sabemos que você apoia o candidato Lula e, se ele for eleito, estas questões certamente serão discutidas. Mas que cenário você prevê para o Brasil se o candidato Jair Bolsonaro vencer as eleições presidenciais?

Estarei no Congresso, portanto, continuarei plantando a semente da Bancada do Cocar e enfrentaremos no Palácio do Planalto. Não tenha dúvidas sobre isso. Mas não temos como prever se poderemos ou não validar projetos com impacto socioambiental positivo, caso Jair Bolsonaro vença. Descobriremos no caminho. Sabemos que no Congresso há uma base aliada a ele com grande força, à qual certamente nos oporemos traçando caminhos para uma maior consciência e responsabilidade socioambiental. Mas não há como prever o que pode ou não acontecer. Continuaremos a defender aquilo que acreditamos.

Qual é o seu maior envolvimento no apoio a Lula neste segundo turno das eleições presidenciais?

Nosso comitê já está organizado para servir de apoio à eleição de Lula como Presidente e Fernando Haddad como Governador do Estado de São Paulo. As Casas Cocar estão organizando atos públicos com parlamentares eleitos do PSOL, a fim de sensibilizar a população para se engajar nesta campanha política em prol de uma verdadeira democracia. Vemos isto como uma co-responsabilidade para um novo projeto governamental.

Qual é sua mensagem para as pessoas que estão escolhendo votar em Bolsonaro?

É essencial que o povo brasileiro vá às urnas neste segundo turno para eleger Lula. É urgente pôr um fim a este período tão sombrio da história da nossa democracia. A luta dos povos indígenas vai além do processo eleitoral, nossa luta é permanente. É por isso que apoiamos fortemente votar em Lula, para garantir nosso direito de permanecer mobilizados sem que o Estado nos nomeie como inimigos. Lula é o caminho contra o ódio, o retrocesso e o autoritarismo. Eleger Lula é votar pela democracia!

Que diálogos você gostaria de estabelecer com a Europa para sua causa?

Minha causa? Eu não tenho uma causa. Luto pela causa dos povos indígenas, a causa do meio ambiente, a causa da vida. É a causa de todos nós. Já temos um diálogo com o Parlamento Europeu, que tem sido construído desde minha participação dentro do movimento indígena. Agora vamos continuar a partir de outro ponto, ou seja, o que eu costumava fazer como parte da sociedade civil, agora vou fazer como Deputada Federal. Todo o trabalho que realizamos dentro do movimento indígena foi para aprovar nossos projetos no Congresso. Mas agora, eu sou um dos votos de decisão.

Mensagem final de Sonia: Chamado Urgente

Este é um momento crítico com uma luta urgente que estamos vivendo no Brasil. O apoio da comunidade internacional é importante para a causa indígena e para as questões ambientais, onde temos muitos obstáculos a vencer. A sociedade brasileira precisa se engajar para eleger Lula. Afinal de contas, ainda estamos enfrentando a democracia versus fascismo. É urgente que todos se envolvam nesta campanha.

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Foto: Edgar Kanaykõ

Célia Xakriabá é originária da Aldeia Xakriabá, localizada em Minas Gerais, estado por onde foi eleita Deputada Federal. Ela é mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília, e doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade.

Dentro da Secretaria de Educação de Minas Gerais, colaborou com a abertura de escolas indígenas e quilombolas e com a reabertura de escolas rurais em todo o estado. Ela é também a primeira Deputada Federal indígena eleita em Minas Gerais.

Muitos eleitores de Bolsonaro são, na verdade, contra Lula e votam a favor do candidato de direita por retaliação. Se você tivesse a oportunidade de tomar um café com ele ou ela, o que você diria?

Hoje acordei pensando sobre isso. Nossa vitória tem uma característica diferente e de grande valor: somos mulheres indígenas que anunciam a emergência climática, a emergência da vida e a Política do Afeto. A maioria dos eleitores de Deputados Federais do PT votaram em Lula, no entanto, a maioria dos eleitores que votaram em nós foram mulheres que escolheram Simone Tebet no primeiro turno.

Agora, um dos meus focos é falar com estas mulheres e mostrar a importância de apoiar Lula. Porque mesmo que Simone tenha anunciado este apoio, para as eleitoras ele não é automático. Uma parte dos jovens que me elegeram por causa da emergência climática, votou em Ciro Gomes para presidente. Portanto, é muito importante voltar às ruas e entender qual é a opinião deles agora.

Ouvi inúmeras vezes a seguinte frase: não quero discutir o cargo de presidente, porque voto em você para Deputada Federal, mas para presidente meu voto é Bolsonaro. Eu pensei: mas é possível unir estas duas escolhas? Na verdade, uma das reflexões que eu já tinha programado fazer depois das eleições é: se uma parte dos bolsonaristas entenderam a emergência indígena, por que a outra parte ainda não entendeu?

Qual é o seu foco neste segundo turno das eleições presidenciais?

Agora temos a responsabilidade de voltar às ruas para, obviamente, reforçar a importância de eleger Lula para aqueles que já votaram nele. Mas acima de tudo, o foco é o diálogo com aqueles que ainda não votaram. Na minha experiência, algumas pessoas só nos escutam através da Política do Afeto, e não estão sequer abertas ao diálogo através da política da argumentação. O governo atual é um governo fascista que propaga a política do ódio. E a campanha política tem nos mostrado isso, especialmente para presidente.

A agressividade presente nos áudios e nos vídeos dos eleitores de Bolsonaro são expressões de ódio. É assustador! Mas consegui reverter alguns votos não pela política da argumentação, mas pela Política do Afeto. Um deles foi na cidade de Uberlândia, onde a taxa de votação é muito alta para Bolsonaro. No primeiro comício que realizamos lá, esses eleitores jogaram veneno e objetos sujos com fezes em nós durante as passeatas. Fiquei fisicamente doente pela quantidade de veneno que nos foi jogado. Mas a última vez que voltei nesta mesma cidade, nos encontramos com um jovem na rua que intemperadamente se aproximou de nós dizendo que era bolsonarista. Ele argumentava com agressividade a razão de sua escolha, prescindindo de sua mãe que o contradizia. Continuamos a conversar, e seu tom de voz permaneceu o mesmo. Mas houve uma mudança espectral quando comecei a andar de bicicleta com ele e em seguida jogamos futebol. Ele se abriu para me escutar, e mudou seu voto.

Então o que é a Política do Afeto?

A Política de Afeto não acontece apenas através da discussão, mas sim quando nos desarmamos de nossas idéias e nos deslocamos em direção ao outro. Porque normalmente trabalhamos para que as pessoas se aproximem de nós, mas isso só acontece depois que nos deslocamos até elas. A palavra de trás é que guia a palavra da frente. E esta forma de fazer política vai muito além do discurso, porque a força motriz é a nossa presença e nossa conexão com o outro.

De onde veio a Política do Afeto? Estou emocionada com esta estratégia, porque sinto que as pessoas não se sentem vistas, e assim se vendem facilmente para os discursos de ódio.

Meus apoiadores muitas vezes sugeriram que eu precisava ter um tom de voz mais imponente e nervoso em meus discursos. Mas desde o início da minha luta, sempre me fiz ouvir não pelo volume da minha voz, mas pelo poder da palavra e pela velocidade com que ela chega ao coração das pessoas. Durante a campanha, eu disse várias vezes que não lutar com a mesma arma do inimigo não significa que estejamos desarmados. É claro que em alguns momentos nossa voz precisa ecoar de uma maneira mais firme, mas não é necessário que seja agressiva.

Repito, não lutar com a mesma arma do inimigo não significa que estejamos desarmados. Precisamos derrotar o ecocídio, o genocídio, o etnocídio. Mas a maior luta é a do “amoricídio”. As pessoas estão perdendo a capacidade de amar, e a Política do Afeto é o antídoto, porque desarma os bloqueios de relacionamento. Nas tentativas de diálogo, muitos eleitores vêm armados de argumentos de ódio. Mas é com a nossa maneira simples de acolher que eles se sentem verdadeiramente parte de nós.

Estou muito feliz em testemunhar situações como esta, que culminaram em declarações alegres e esperançosas de nossos eleitores. Eles demonstraram grande engajamento durante a campanha, sentindo-se co-responsáveis no processo de mobilização de outros eleitores. Eles se emocionaram com nossas canções e danças durante os comícios e celebraram a esperança que a Política do Afeto traz.

Para mim, a maior fronteira que existe não é entre estados, entre países ou entre continentes. Na verdade, a maior fronteira que existe é entre as pessoas. E nós quebramos esta fronteira com a Política do Afeto, que não é uma utopia! Ela é real, e estamos vivendo-a agora. Por que isso é possível? Porque as pessoas estão se dando conta de que não podemos curar o mal com a mesma doença. O princípio ativo curador é a força de percorrermos o caminho da cura de nós mesmos. Experimentei isso durante a campanha, vendo pessoas em praça pública que agressivamente se declaravam bolsonaristas, reconsiderando seu voto depois de tecer um momento de afeto conosco.

Nestas trocas, sempre lembrava a todos que antes do Brasil verde e amarelo, existia o Brasil do cocar que era vermelho – cor do solo, da pele e do sangue dos povos indígenas. Também sempre digo que hoje temos uma emergência climática que requer uma transformação econômica urgente. Nessas experiências durante a campanha, todos eleitores com os quais teci uma troca afetiva se mobilizaram, afirmando seu apoio ao nosso projeto político.

Este posicionamento é humano antes de ser político. A emergência climática é também, acima de tudo, uma emergência humana?

Sim, e as pessoas precisam ser sensibilizadas para essa causa e retecer o afeto por si mesmas, pelos outros e pela mãe terra. Se ainda não foram sensibilizadas pelo afeto, serão pela emergência.

Qual é a relevância dos povos indígenas neste contexto?

A ONU já o reconheceu. Nós somos a solução número um para deter a crise climática. E se a sociedade civil não reconhecer isso agora, o planeta vai acabar para nós, mas também para todos os povos não indígenas, seus pais, filhos e amigos. Somos a última geração que pode deter a crise climática, e já o estamos fazendo. Somos 5% da população mundial e protegemos 80% da biodiversidade.

Somos a minoria e estamos fazendo o que é melhor para o planeta neste momento. Será o mesmo dentro do Congresso Nacional. Lá, talvez não façamos a maioria das coisas, mas faremos as coisas mais importantes. Quando os políticos e a sociedade civil que os elege não priorizam a emergência climática e a proteção dos territórios indígenas, eles estão destruindo nossas vidas, mas também as deles.

Você foi eleita pelo Estado de Minas Gerais. Como vê a relevância deste território dentro da emergência climática?

Todos os biomas são importantes. Nós não nos identificamos por território geográfico, mas por biomas. Dizemos que somos do bioma Cerrado, do bioma Amazônia, do bioma Mata Atlântica. Descolonizamos este tema nacional e internacionalmente, pois a maioria dos projetos e fundos de investimento enviados ao Brasil são destinados exclusivamente à Amazônia. Esta prática, vestida com roupagem ambiental, centraliza o debate de forma colonizada, priorizando os interesses econômicos. O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, com mais de 50% de sua vegetação nativa desmatada. Em Minas Gerais, o maior crime ambiental da última década foi cometido com a Barragem de Mariana. Enfim, todos os biomas são importantes.

Temos que nos preocupar em salvar o Planeta Terra? Ou devemos nos preocupar em salvar a nós mesmos primeiro?

Eu sempre disse que não restam cinco minutos para salvar o Planeta. Restam cinco minutos para salvar as pessoas. É urgente entender que a Terra não precisa de nós, somos nós que precisamos dela. Não são as águas que precisam de nós, nós precisamos de água para sobreviver. O mesmo vale para as montanhas, as florestas, os animais e todos os biomas.

Diante da pesquisa sobre a possibilidade de viver em Marte, pergunto a todos: vocês acreditam que vamos cuidar do que vamos ter se não cuidarmos do que já temos? Não seria mais fácil cuidar do que já temos? A luta agora não é apenas para curar o planeta, mas, acima de tudo, é para não torná-lo ainda mais doente. Ser humano é, mais do que nunca, ser rio, ser terra, ser animal. Se não nos tornarmos o planeta agora mesmo, não será o planeta que vai acabar, seremos nós.

Pergunto também: se tivéssemos que ir viver em Marte, mas houvesse apenas dois mil lugares. Os povos indígenas seriam escolhidos? Acho que não. Isso é necropolítica, onde um pequeno grupo escolhe quem vai viver e quem vai morrer. Eu não quero isso. Eu quero um planeta onde todos nós caibamos, e isso já acontece na Terra. É urgente nos unirmos para salvar nossa espécie.

*Especialista em ESG, Facilitadora de Projetos Indígenas com foco em regenerabilidade socioambiental e Presidente da Coocar.org.