Quanto custa o ódio?

Quanto custa o ódio?

Não foi só pelo dinheiro! A cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil, e não é por causa de 200 reais. Essa é uma dívida mais cara e antiga que a da morte do jovem congolês, Moïse Kabagambe, um imigrante refugiado da guerra em seu país que se deparou com outra batalha silenciosa e secular no Brasil.

Moïse, diferente de muitos dos nossos ancestrais escravizados, atravessou os mares em busca de oportunidades, uma vida melhor, mas acabou sendo vítima do mesmo crime que mata a população negra no Brasil desde 1539: o racismo

De acordo com o Atlas da Violência, em 2019, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios no Brasil, com uma taxa de 29,2 mortes por 100 mil habitantes. Entre os não negros, a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, esses números significam que o risco de um negro ser assassinado é maior que o dobro de uma pessoa não negra.

Entre os anos de 2009 e 2019, cerca de 623 mil pessoas foram vítimas de homicídio no Brasil. Destas, 333 mil (53% do total) eram adolescentes e jovens. Na análise dos dados da última década, os autores do levantamento observaram que a redução dos homicídios ocorrida no país esteve muito mais concentrada entre a população não negra do que entre a negra. 

Na última década, o número de negros vítimas de homicídio cresceu 1,6%, passando de 33.929 vítimas em 2009 para 34.466 em 2019. Já as vítimas não negras passaram de 15.249 em 2009 para 10.217 em 2019, redução de 33%.

Uma luta seletiva 

O assassinato brutal de Moïse Kabagambe, que no dia 24/01 saiu para cobrar o pagamento de diárias atrasadas no quiosque Tropicália, onde trabalhava na Barra da Tijuca, expôs algo que vai além do racismo existente no Brasil. Ele mostra como a “aversão a estrangeiros” em nosso país é seletiva, tem alvo e cor.

O tratamento oferecido aos imigrantes africanos, venezuelanos, haitianos ou caribenhos tem uma proporção muito diferente do oferecido aos imigrantes europeus e norte-americanos não negros, por exemplo. E isto é visível até nos veículos de comunicação e na agilidade para solução dos casos. 

A ONG “Estou Refugiado” (@estourefugiado), membro da Comunidade CIVI-CO, tem como foco a inserção de refugiados no mercado de trabalho e reúne voluntários, profissionais de Recursos Humanos, psicólogos e comunicadores. Frente ao ocorrido com Moïse, a ONG se manifestou nas suas redes sociais:

“Morreu vítima da ignorância, do preconceito, do ódio que atualmente parece brotar em cada esquina e que a qualquer momento pode atingir a você, a mim, a qualquer um de nós. Principalmente as minorias. Moïse tinha 24 anos. Estava há 13 no Brasil. E sentia-se mais brasileiro do que muitos que nasceram aqui e há mais tempo do que ele.”

@estourefugiado no Instagram.

Esta infeliz situação mostra também as péssimas condições e a fragilidade de nossas leis e relações trabalhistas. A falta de fiscalização, burocracia, morosidade nos julgamentos e principalmente a “falta de culpados”, colaboram para um cenário extremamente desigual

Reduzir as desigualdades é uma construção que passa por processos de adoções de políticas públicas, fiscais, tributárias, salariais e de proteção social. Esta é uma barreira que o país não consegue avançar, principalmente por conta de uma cultura escravocrata que é reproduzida por séculos. 

ODS

A 6ª edição do relatório “Refúgios em Números”, produzido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), divulgou que, até o final de 2020, havia 57 mil pessoas refugiadas reconhecidas no Brasil

Dentre esses, 84% dos refugiados entrevistados já concluíram ao menos o Ensino Médio, sendo que 34% deles concluíram o Ensino Superior, número bem acima da população brasileira que é de 15,7%, informou a análise sociodemográfica e laboral de refugiados residentes no Brasil, realizado pelas Cátedras Sérgio Vieira de Melo e o Alto Comissariado das Nações Unidas (UNHCR)

O ODS 10 propõe a redução das desigualdades dentro dos países. Entre as metas do objetivo tem uma específica sobre facilitar a migração e a mobilidade ordenada, segura, regular e responsável das pessoas, inclusive por meio da implementação de políticas de migração planejadas e bem geridas.

Porém, até o Ministério da Justiça fez objeções à redação da meta original, apontando que os termos usados não foram inclusivos e que privilegiam as políticas migratórias voltadas para trabalhadores qualificados e que, portanto, iria na direção contrária das reduções das desigualdades.

A exemplo de imigrantes haitianos e venezuelanos, que não se adequam a proposta de imigração planejada, em todos os casos a prioridade deve ser o acolhimento. Foram levantados os avanços nesse sentido na nova legislação brasileira sobre imigração.

Acrescenta-se que a redação original não trata dos problemas concretos que a política migratória enfrenta no Brasil, com foco na integração dos migrantes e refugiados

#SomosTodosMoise 

A princípio, o assassinato de Moïse não recebeu uma cobertura midiática, mas a denúncia ganhou a comoção pública na internet. No Twitter, a indignação rendeu mais de 50 mil tweets com a hashtag “#JustiçaparaMoise”. A causa ganhou o apoio de artistas e autoridades brasileiras, ficando entre os assuntos mais comentados na rede social. 

Todos estão unidos pedindo justiça para que outros Moïse Kabagambe, vítimas da desigualdade social, não percam as vidas enquanto lutam por direitos básicos. E que estrangeiros e brasileiros possam ter oportunidades e liberdade para alcançar seus sonhos em uma sociedade mais justa e igualitária.