Sobre escutas e culturas
Por Janine Rodrigues* Quando eu tinha sete anos, morava numa cidade bem pequena chamada Cardoso Moreira, no Rio de Janeiro. Lembro de tudo. Da escola, da vendinha da esquina que tinha picolé de jaca. Da ponte de madeira que eu atravessava para chegar na escola. Dos desfiles de final de ano. Da folia de reis. Lembro-me também que quase ninguém tinha telefone em casa. Tínhamos orelhões nas ruas e associações onde as pessoas pagavam com moedas por alguns minutos para usar o ”aparelho mágico”. Cresci, papai morreu, mudei de escola e de cidade. Muita coisa se passou. Recordo-me de ver a novela ‘’Explode Coração’’. Teve uma cena onde dois personagens conversavam usando um computador. Se viam e se ouviam e eu pensei: mas que mentira das brabas! Imagine só, conversar com alguém a partir de uma tela…. Era a 6ª série no colégio e uma amiga de descendência oriental me contou que sua prima tinha chegado ao Brasil para passar férias. Ela era japonesa e não sabia muito o português. A tal prima tinha trazido vários CDs. Naquela época tinham muitas fitas cassetes, mas nem tantos CDs aqui no Brasil. Ela também trouxe um aparelho de som moderno que tocava os mini-discos. Minha amiga estava toda animada, pois tinha preparado um doce de leite de presente surpresa para a prima, impossível achar no Japão. Além disso, a gente amava pular elástico e ensinamos para a Ayume. A gente dizia para ela tirar as meias para brincar, mas ela não tirava. É costume no Japão o uso de meias. Daí, para ela não cair, saímos da varanda, que tinha um piso escorregadio, e fomos para o quintal. As meias ficaram cheias de barro. Foram dias muito felizes. As culturas influenciam nossas vidas e constroem nossos olhares sobre o mundo, sobre nós mesmos. Hábitos criam culturas. As culturas desenham nossas experiências no mundo e daí nascem nossas histórias. Nossas histórias contam ao mundo quem somos. O que valorizamos. Ao que damos importância. E acredite: é preciso ter interesse pela história do outro para que se conheça sua cultura, para que se valorize e respeite aquilo que o outro compreende como sagrado, como importante. Conectar-se com determinados elementos de uma cultura sem o interesse de conhecê-la mais a fundo pode ser algo perigoso, desrespeitoso. Você acharia estranho se uma pessoa simplesmente usasse um turbante, um guia ou um fio de contas só por achar estes elementos bonitos? Talvez não ache nada demais… Mas você acharia estranho uma pessoa sem vínculo aparente com a cultura judaica comprar e começar a usar uma quipá (aquele ”chapéu” pequeno utilizado pelos judeus)? Usar o quipá para ir a praia, ao bar, para comer um porco assado num evento de família? Com certeza seria uma cena desrespeitosa e lamentável. E por mais que você não saiba exatamente o significado do quipá, eu acho que, na dúvida, você não o usaria ”só para usar”. De alguma forma, ainda que inconscientemente, você provavelmente acharia estranha esta atitude. A questão, portanto, não é o uso ou não uso e sim da importância de entender o que é um determinado elemento simbólico numa cultura para que, então, se decida usar ou não. É preciso interesse pelas histórias do outro. Ouvir a cultura do outro. Se não há escuta também não há respeito, mas se há, um universo inteiro de possibilidades se cria e podemos viver o novo. Foto: Janine Rodrigues/Acervo pessoal Sobre os turbantes Foto: Ato Aikins/Unsplash Aqui no Brasil, o turbante representa a afirmação da identidade cultural que foi trazida pelos negros que vieram de África quando foram escravizados. As peças eram usadas como símbolo de resistência da sua cultura e reafirmação da sua identidade africana. É sobre relembrar e reforçar os aspectos da cultura negra africana, resistindo e lutando contra o racismo e o preconceito. Sobre os guias, colares e fio de contas No idioma yorubá esses colares se chamam Àkufi isiro ou Ìlèkè. Antes da invasão e extermínio realizado pelos europeus na África, os yorubás usavam colares de pedras, sementes, conchas, dentes de animais… Na colonização e escravização, os europeus trouxeram para o Brasil as missangas (ou contas artesanais) que usavam nas suas roupas. Assim, com o surgimento do Candomblé aqui no Brasil, os colares dos Orixás passaram a ser feitos com este material. Assim surgiu a expressão “fio de contas”. Cada Orixá é representado por uma cor e simboliza cargos ou nações (etnias). Foto: Douglas Ribeiro/Unsplash Na umbanda os colares se chamam guias, pois representam a entidade ou guia espiritual de cada pessoa. Em geral o material miçangas de porcelana, sintéticas ou cristal. Sobre o quipá Foto: Levi Meir Clancy/Unsplash Quipá ou kipá (ou ainda “solidéu”) significa cobertura em hebraico. É o chapéu, boina, touca ou outra peça de vestuário utilizada pelos judeus tanto como símbolo da religião como símbolo de temor a Deus. *Escritora e educadora, especialista em diversidade e fundadora da Piraporiando.
Terapia assistida por animais transforma vidas de crianças em vulnerabilidade
Por Natureza Conecta Um olhar sem julgamento, amor incondicional, acolhimento. Os animais têm a capacidade de acessar a mente e as emoções de crianças em situação de vulnerabilidade de uma forma que vai além da capacidade humana. Este amor potencializa as crianças que se sentem vítimas da sociedade e da família e tem um papel fundamental no processo de cura. Esta é a missão da ONG Conecta, criada em 2021 pela médica veterinária Daniela Gurgel, que vem desenvolvendo um trabalho único no Brasil: TAA – Terapia Assistida por Animais de Fazenda. Este modelo de intervenção tem critérios claros e bem definidos e é inspirado no modelo de uma entidade norte-americana, chamada Green Chemneys. A Conecta está situada em Itu, cidade do interior de São Paulo, onde os animais são parte integrante do processo de tratamento realizado por equipes multidisciplinares. “Nosso questionamento era: qual o valor, tangível e intangível, de ressignificar uma vida, especialmente na infância? Em que este processo pode ser transformador?“, diz Daniela Gurgel. A ONG surgiu a partir destas dúvidas e da busca de respostas para um recorte especial e significativo da infância no Brasil: crianças em situação de alta vulnerabilidade social, alvos de violência, abusos, negligência ou abandono e crianças com transtornos psicológicos que comprometem o cognitivo, como depressão, TOC ou autismo, entre outras deficiências. Busca e amor pelos animais Formada em Relações Internacionais, Daniela Gurgel começou sua vida profissional como assessora de eventos. O casamento com um cineasta a levou para os Estados Unidos. Embora desejasse continuar a exercer sua profissão, ela não podia trabalhar naquele país, pois não tinha um visto de trabalho. A solução encontrada foi atuar com voluntariado. O próximo passo foi entrar na faculdade de Medicina Veterinária. Num primeiro momento, Daniela pensava em ser cirurgiã ou atuar como clínica, mas, aos poucos, ampliou sua percepção do poder intrínseco dos animais. “Busquei alternativas diferentes e conheci o movimento Bem Estar Animal, que me levou a uma vivência de um mês na Unesp de Jaboticabal, onde fiz uma pesquisa com cabras e me apaixonei por estes animais, tanto que levei três comigo e foram morar no haras de um amigo”. Colocando em prática Daniela fez estágios em organizações internacionais de proteção animal, como a World Animal Protection, atuando na realização de campanhas ligadas ao tema. Todo esse envolvimento se transformou no propósito da ONG Conecta: qualquer mudança somente acontece a partir de uma experiência, de uma vivência. A ONG Conecta atua de forma prática e efetiva contemplando três Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela ONU para 2030: ODS 3 – Saúde; ODS 4 – Educação de Qualidade e ODS 15 – Proteger a vida terrestre. Todas as atividades são realizadas por profissionais das áreas de Saúde e Educação, com o objetivo de desenvolver e melhorar aspectos sociais, físicos, emocionais e educacionais. “Atendemos crianças, adolescentes e suas famílias, que não são absorvidos pelo sistema e vivem em situação de pobreza ou de extrema pobreza, sempre apoiados na Convenção dos Direitos das Crianças e Adolescentes, que prevê o direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Seu trabalho já apresenta benefícios comprovados em diversas esferas, como melhoras no desempenho acadêmico e social das crianças. Em âmbito afetivo-relacional, a TAA contribui para a auto percepção e o respeito ao outro, enquanto o estímulo psicológico derivado do contato com os animais diminui sintomas de ansiedade e estresse. “Neste pouco tempo de atividade, já colhemos resultados positivos em tratamento de doenças mentais e uma melhora significativa da funcionalidade em portadores de deficiências intelectuais, reinserindo crianças e adolescentes à sociedade de forma natural”, completa Daniela. A importância do não-julgamento Os profissionais que trabalham com a Terapia Assistida por Animais acreditam que a eficácia do tratamento está ligada ao “olhar sem julgamento” dos bichos. Essa compaixão faz com que as crianças em situação de vulnerabilidade não se sintam inferiorizadas. “Ainda hoje fico surpresa em ver como os animais conseguem acessar áreas psicológicas e emocionais dessas crianças numa profundidade que às vezes os melhores profissionais não atingem”, comenta Daniela. Segundo sua experiência, Daniela Gurgel acredita que o amor sem julgamentos e o acolhimento sem preconceitos oferecidos pelos animais ajudam na cura destas crianças e na descoberta de sua própria potência – e, assim, elas se desenvolvem. Música também cura As crianças assistidas pela ONG Conecta acabaram de lançar um videoclipe intitulado “Amor Que Cura”. A música é um funk rap produzido com o apoio da compositora Claudia Amorim. O material é mais uma experiência para o desenvolvimento das habilidades dessas crianças, que provam todos os dias que o céu não é o limite. Assista ao videoclipe: CONECTA VIDEOCLIPE YOUTUBE 1 Associação Natureza Conecta Fazenda Santa Lúcia – Itu (SP) daniela.gurgel@naturezaconecta.org