O metaverso da filantropia

O metaverso da filantropia

por Marcelle Decothé*

Você já deve ter ouvido falar ou lido algo sobre o fenômeno tecnológico do momento: o Metaverso. Isso nada mais é do que a terminologia utilizada para indicar um tipo de mundo virtual que tenta replicar a realidade através de dispositivos digitais. Uma realidade moldada e controlada por um programador, que opera através de ferramentas outras possibilidades de mundos e sentidos distintos de bem-viver.

A Rede Comuá (antiga Rede de Filantropia por Justiça Social) organizou um seminário internacional na cidade de São Paulo, que trouxe luz a debates relacionais entre democracia, filantropia comunitária, justiça social e direitos humanos. O encontro foi protagonizado por pessoas negras, mulheres cis e trans, por organizações sociais e fundos comunitários que operam da ponta transformações significativas. Naquela semana, nosso próprio metaverso da Filantropia Social foi criado, onde a realidade moldada através de nossa teoria de mudança que tem no centro a diversidade, o território e a forma de fazer desburocratizada.

Em nosso Metaverso filantrópico, imaginamos um mundo onde os recursos mobilizados e a cultura de grantmaking no Brasil e na América Latina considerem estratégias de impacto social lideradas por pessoas negras, mulheres, LGBTQIA+ e periféricas, em que o impulsionamento de movimentos, organizações sociais e coletivos seja orientado para a redução de desigualdades de forma coletiva, territorializada e menos burocrática. Através da reunião dos protagonistas da filantropia comunitária, a celebração dos 10 anos da Rede Comuá trouxe visibilidade para reflexões sobre práticas decoloniais e prioridades estratégicas que o investimento social privado e a filantropia precisam mergulhar no próximo ciclo.

Acreditamos que para alcançar a equidade racial e de gênero nesta realidade metavérsica é necessário compartilhar recursos e poder com quem cotidianamente produz impacto nos territórios mais desiguais do país. Juntos, investidores de impacto social e coletivos, movimentos e organizações de favelas e periferias, aldeias  e quilombos podem recriar um mundo onde a base seja a justiça social e oportunidades iguais.

Dando linha para diversidade
Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem
Legenda: Gelson Henrique, Marcelle Decothe e Raull Santiago, fundadores da Iniciativa PIPA. Créditos: Leo Pinheiro/Valor

A Iniciativa PIPA é uma organização criada por quatro ativistas periféricos do Brasil e que tem como principal missão contribuir para democratizar o acesso ao investimento social privado no Brasil. Em agosto deste ano, lançamos uma carta aberta à filantropia brasileira, com o propósito de ajudar a construir um mundo onde os recursos filantrópicos e privados sejam acessíveis às organizações, aos coletivos e aos movimentos de base favelada e periférica de maneira ampla e equitativa em termos de raça, gênero e classe.

Nela, convidamos os colegas de fundações privadas e familiares, as empresas que impulsionam o impacto social e a comunidade de doadores individuais a repensarem suas políticas internas de construção. O objetivo é que eles priorizem a contratação de perfis negros, periféricos, LGBTQIA+ e de mulheres para gerirem seus portfólios e estarem em cargos de gestão e direção, para tomarem a decisão sobre quem e quanto se pode investir na mudança efetiva. Além de impulsionar um modelo de doação e repasse de recursos que priorizem o fomento a iniciativas negras, periféricas e com recortes de gênero.

Não precisamos desenhar uma realidade paralela para entender que fomos nós, pessoas negras, indígenas e periféricas, que garantimos que as favelas e periferias pudessem comer e se proteger durante a pandemia. Imaginem a transformação política, econômica e social que conseguiremos construir se recebermos recursos sustentáveis, flexíveis e de longo prazo, para além do momento pandêmico.

Transformar o metaverso da filantropia por justiça social e comunitária em realidade material e concreta depende de todo o ecossistema, principalmente de investidores sociais privados e suas múltiplas organizações e empresas. Que eles finalmente vejam as favelas e periferias, a população negra, indígena, quilombola, povos do campo e da cidade, mulheres, LGBTQIA+, não apenas como beneficiárias, mas como protagonistas da mudança. Somos os programadores do bem-viver, e para termos sucesso na redução das desigualdades, precisamos que nossa realidade de transformação concreta seja a regra, não a exceção.

Conheça a Iniciativa PIPA

*Pesquisadora de gênero, raça e violência e Cofundadora da Iniciativa PIPA.

Texto publicado originalmente na revista Alliance Magazine e traduzido no blog da Rede Comuá.